quarta-feira, 31 de março de 2010

Discurso sobre o Poder Judicial

Passamos a incluir um discurso feito no longínquo ano de 1972, onde já se frizava e lutava pela independência do poder judicial face ao poder político.
Tema actual e candente, sempre e sempre nas mentes das pessoas...
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Poder Judicial*
Del Vecchio, na sua Teoria do Estado, proclamou esta verdade que orientará tudo o que vou dizer sobre o Poder Judicial:
«O Direito, na sua mais alta expressão, como pura justiça, é superior ao Estado; não é, portanto, essencialmente político. Ao menos diante do Tribunal da Razão, não deve a justiça inclinar-se perante o Estado, mas este perante aquela».
Ë assim que, sejam quais sejam os fundamentos da legitimidade do poder político por que optemos, o certo é que desde os inícios do desenvolvimento da ciência política, todos os doutrinadores estabele-cem» ao lado do poder legislativo e do poder executivo, um.outro poder de autoridade judiciária, ao qual incumbe aplicar as leis na dupla forma de jurisdição e de execução.
Jurisdição enquanto define o Direito (jus dicere) e execução enquanto impõe e torna obrigatório o cumprimento do Direito definido.
Todo o governo dos povos encerra em si mesmo o germe dos pode-res legislativo, executivo e judiciário.
Se todos estes poderes se reúnem num só homem ou numa só assembleia teremos o absolutismo, entrando assim em completa crise a liberdade individual.
A garantia desta liberdade individual só pode alcançar-se através da divisão ou contrabalanceamento daqueles poderes, ou seja, desde que uns fiscalizem os outros; só assim poderemos chegar a estabelecer um verdadeiro Estado de Direito.
Locke, o célebre pensador inglês, preconizou em 1690 a bipartição dos poderes em legislativo e executivo, por ter entendido que o poder judiciário estava absorvido pelo executivo.
Esta teoria do Estado sofreu repensada meditação a Montesquieu, um século depois, em 1784, o qual no seu luminoso trabalho De 1'Esprít des Lois adoptou a forma tripartida dos poderes do Estado, em que o Poder Judicial adquire importância igual aos restantes com a competência exclusiva de velar pelo cumprimento das leis por parte dos dois restantes poderes e com o escopo salutar de garantir e defender a liberdade individual dos cidadãos.
Será aqui de notar que as críticas que têm sido formuladas à teoria de Montesquieu carecem de fundamento sério, visto que seria atraiçoar o pensamento deste insigne enciclopedista dizer-se que os seus princí-pios redundariam num condenável imobilismo da máquina estadual dado que cada um dos poderes entorpeceria ou paralisaria a acção dos restantes.
Ê que Montesquieu, na formulação da sua doutrina, parte do princípio esclarecido, a que chamou «uma experiência eterna», de que todo o homem que detém o poder é naturalmente levado a abusar dele, e de que esse abuso só se detém quando encontre limites.
«Pour qu'on ne puisse abuser du pouvoir il faut que, par Ia disposition des choses, le pouvoir arrete le pouvoir».
Vemos, assim, que o sistema de Montesquieu representa um notável aperfeiçoamento das doutrinas já em voga em Inglaterra desde Locke, e diremos também com o eminente juiz inglês Sir William Blackstone, nos seus Commentaries on the Laws of England: «Se Montesquieu nos aparece como discípulo dos Ingleses, é certo que lhe coube depois ser mestre deles» (1).
A evolução verificada posteriormente, já mesmo na Constituição Americana de 1787, norteou-se pela influência decisiva do Espírito das Leis, cujos princípios vieram a obter plena consagração, como doutrina do exercício da Soberania, na Revolução Francesa de 1789.
Implantada a era burguesa sob a égide da Democracia, que ofereceu ao Mundo os deleites da Belle Epoque, vieram a seguir as grandes heca-tombes provocadas pelas duas Grandes Guerras, que geraram choques tremendos entre os sistemas capitalistas e os regimes liberais e entre a democracia e as formas totalitárias do governo e por forma tão violenta e destruidora que, em muitos casos, foi postergado, o princípio da divi-são dos poderes de Estado, em nome de uma aberrante e avassaladora actividade política que quis imprimir ao Executivo o predomínio abso-luto e absorvente, com fórmulas adrede criadas, como se se estivessem a refundir todas as velhas doutrinas sobre a legitimidade do poder.
Em todo o caso, e regressando ao nosso tema — é de notar que a ju-risdicidade, a largos espaços precária, constituiu — e constitui — o grande baluarte da defesa dos direitos humanos, garantida pelo Poder Judicial, ainda que com novas designações e com manifesto propósito de ser diminuído, por várias formas, na sua salutar acção.
Ê que a independência dos tribunais, valor ou até super-valor sensível, nunca foi ostensivamente desrespeitada como elemento fundamen-tal dos princípios mínimos do Estado de Direito, que aliás todos se arrogavam.
E será justíssimo salientar que, diminuída ou circunscrita embora a esfera da sua autoridade tutelar, o poder judiciário ordinário soube sempre manter, em todos os países, no terreno que lhe era afecto, a dignida-de de uma alta e nobre função que dá a cada um a certeza da sua segu-rança, sem o que o homem, inquieto com as ameaças à sua liberdade, aos seus bens, à sua própria existência, teria necessariamente de deses-perar ou de soçobrar.
É esta prova inconcussa, dada pelo Poder Judicial, aquilo que mais o destaca e acredita, exigindo que a sua independência seja efectivada com força legal por um ordenamento sistemático, não em benefício dos outros poderes do Estado mas em vista do fim que a reclama: — a defe-sa dos direitos humanos.
O Estado de Direito só existe quando haja um Poder Judicial livre, autónomo e independente, que, sem cuidar da coisa política, seja o garante do cumprimento das leis, tanto por parte dos governantes como dos governados.
Entre nós a primeira Lei é a Constituição que, rígida como é, impli-ca a subordinação das leis ordinárias aos seus preceitos.
Aqui defendemos pois, a criação imediata de um Tribunal de Çons-titucionalídade, aflorado já de resto no § 1.° do art. 123.0 da nossa Cons-tituição (Reforma de 1971), tribunal que deverá julgar com força obri-gatória.
Reiterarei, por isso, agora, a sugestão que um dia apresentei na imprensa, na qual propugnei por que um § único do citado art. 123.° ficas-se assim redigido:
«Suscitada a questão da inconstitucionalidade, o incidente sobe em separado ao Tribunal de constitucionalidade a fim de ser emitida decisão obrigatória para todos os Tribunais e autoridades administrativas».

António Oliveira Braga

(1) Seja-me entretanto permitido recordar (já que estou a falar do grande Montesquieu, cuja teoria do Estado, para mim — sobretudo nos seus reflexos directos sobre a competência do Poder Judicial—não está ainda desmentida como aspiração presente) seja-me permitido recordar, ia eu dizendo, neste ano de 1972 em que, nós portugueses celebramos mais um centenário da publica-ção dos Lusíadas, que aquele eminente filósofo, na própria obra De 1'Esprït des Lois, LXXI, cap. 17, nos presta uma quente home-nagem que se traduz neste tocante passo:
«A descoberta de Moçambique e Calicut foi cantada por Camões, cujo poema faz sentir alguma coisa dos encantos da Odis-seia e da Eneida».
* Discurso proferido na sessão inaugural do Colóquio sobre Organi-zação Judiciária, promovido pela Associação Jurídica die Braga, em 18-10-1972.

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