quarta-feira, 31 de março de 2010

A ÚLTIMA DECLARAÇÃO...

E aqui vai a última declaração, que versa a política internacional do regime e também o entendimento que deveria ter lugar face à conjuntura e às posições de vários países que ostensivamente isolavam Portugal.
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(começo da transcrição)
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TERCEIRA DECLARAÇÃO

A política externa do Governo nos últimos anos

A inesperada demissão do titular da pasta dos Negó­cios Estrangeiros — tanto mais inesperada quanto é certo ter-se produzido num momento agitado da campanha elei­toral, em que parecia imperioso mostrar, por parte do Governo, uma perfeita coesão e um perfeito sentido de rumo, ao menos na fachada — permite-me abordar com mais liberdade o problema da política externa portu­guesa dos últimos anos.
Não se trata já agora de discutir com o Ministro nem de censurar a sua acção e a sua incapacidade. Como ambos somos candidatos a deputados — um, evidente­mente privilegiado, porque se socorre do apoio salvador da União Nacional, outro, em nome de uma oposição real­mente gigantesca e indomável mas submetida a todos os condicionalismos que a lei eleitoral possa mais ou menos habilmente fabricar e impor — podemos discutir e apre­ciar com clareza as linhas gerais dessa política, de que sempre aquele antigo ministro se tomou intérprete e que sempre tão enfatuadamente proclamou nas suas pitorescas conferências de imprensa.

Desde que eclodiu a vaga terrorista em Angola, a polí­tica externa portuguesa jamais esteve à altura das cir­cunstâncias e dos acontecimentos. Não deu um único passo em frente para esclarecer nem o país nem a. opinião inter­nacional.

Apelamos debalde em todos os tons para a interven­ção da O. N. U.; fizemos discursos melodramáticos no seu seio, agitando sistematicamente o perigo da expansão comunista para impressionar os Estados Unidos, a Ingla­terra, todos os Membros do Pacto do Atlântico a que ade­rimos à sobreposse, sabendo de antemão quanto era fictícia e eventual, apesar de nos custar largas somas de dinheiro e concessões lesivas da nossa soberania; convi­damos insistentemente o Secretário Geral da O. N. U. a visitar com todas as honras os nossos territórios ultra­marinos e ele sempre se recusou, não polidamente mas até em geral com aspereza; formulamos inúmeras exposições em que declarávamos estar a servir em África com o mais nobre desinteresse idealista, a causa da civilização ocidental; dispendemos porventura milhares de contos, durante alguns anos, em proporcionar digressões princi­pescas ao Ultramar a diplomatas, a escritores, a estadis­tas, a militares, a todo um mundo de ilustres individuali­dades com a esperança—ingénua esperança—de que, no seu regresso, elas nos prestariam a devida justiça em depoimentos pessoalmente confirmados; até que por fim desistimos em face dos magros resultados obtidos; ata­cámos abertamente a O, N. U. e muitas vezes nas suas votações quando se tratava do nosso caso, com surpresa e mágoa, verificámos que ficávamos em pleno isolamento e mais: que os nossos amigos e aliados ou votavam contra nós ou, o que em diplomacia significa a mesma coisa, cor­tês e piedosamente se abstinham, como há poucas sema­nas sucedeu quando, ao negarmos a nossa incursão na Zâmbia, a vizinha e aliada peninsular Espanha cautelosa­mente se absteve.

O Governo manteve há anos conversações directas com representantes africanos, mas elas não chegaram a qualquer conclusão e o país nunca foi informado do que então se passou.
Esta é a situação concreta a que fomos conduzidos nos derradeiros anos relativamente ao problema capital da Pátria que, por haver sido internacionalizado, só pode também encontrar uma solução condigna no plano inter­nacional.

Pouco a pouco fomos ficando desamparados, divor­ciados daquele conclave; «incompreendidos», como se cos­tumava lamentar o Dr. Salazar, não obstante termos pas­sado todo este período a suplicar, às claras ou entre basti­dores, movendo todas as possíveis influências para que nos viessem a compreender...
Aquelas «famosas» conferências de imprensa do cessante ministro tinham o mesmo .inalterável receituário: um violento e frontal libelo à intromissão da O. N. U. nas nossas questões internas (que todavia, paradoxalmente ligávamos à conjuntura internacional anti-comunista), um ataque velado, tímido, cheio de insinuações, de ironias e de mal disfarçadas acusações, aos nossos amigos e aliados, como os Estados Unidos e a Inglaterra, que entretanto não eram citados, e por último a defesa entusiástica, incon­dicional e maciça das nossas atitudes, das nossas posições e dos nossos direitos.

Nunca se passava disto e assim rolaram mais de oito anos sem um avanço, sem uma conquista, sem um pro­gresso. No final, seguia-se um lauto almoço... e a luta em África prosseguia.

Amarrados às comprometedoras e ostensivas amiza­des com os Estados Unidos Racistas da África do Sul e da Rodésia que votavam automaticamente ao nosso lado, como se a causa fosse a mesma, perdemos todo o prestí­gio das alianças e das amizades clássicas; e até o Brasil, esse fraterno e maravilhoso Brasil, para manter a sua coerência política, chegou a votar contra nós!

Esta é a política claudicante do Governo e outra não se lhe pode apontar até agora.

Estamos isolados e somos escarnecidos mesmo que tenhamos razão; mas ter razão é uma coisa e saber tê-la e defendê-la é outra.

Pugnamos pelo restabelecimento das relações diplo­máticas e económicas com todos os países do mundo, não só pelo imperativo categórico dos nossos interesses que já não podem ser encarados sob uma óptica regional ou continental, porque a vida internacional é cada vez mais gregária e interdependente, nesta época de glória cien­tífica e de prodigiosa expansão técnica, mas ainda porque pertencemos a uma organização de alto sentido universal.

Não se trata, como disse o ministro cessante no seu discurso de despedida, de trocar o Ultramar pelas boas graças de Moscovo ou de Praga trata-se, sim, de coexis­tência pacífica, da vasta confraternização humana, que tanto pode afirmar-se num congresso científico como numa competição desportiva ou na venda de uma partida de cortiça.

Essa exclusão é absurda e mutilante da ordem internacional — tão absurda como, por exemplo, manter rela­ções com Cuba, que é um país considerado marxista e cuja política de agitação doutrinária, e até de táctica de guerri­lhas, tem sido frequentemente verberadas pelo capitalismo americano do norte e do sul.
Como funciona a nossa Aliança com a. Inglaterra, que deixamos deteriorar?

Eis uma velha e amiga aliada que nos abandonou, que não confia em nós, que nos critica e que nos impõe o blo­queio marítimo do porto da Beira, não obstante as nossas reiteradas garantias de inocência quanto ao aprovisiona­mento de carburantes da Rodésia. E a própria Espanha, distante já de nós implicitamente, nos lança, a arguição de colonialistas quando reclama com firmeza a restituição de Gibraltar e quando, há anos, restituía a independência a alguns dos seus territórios em Marrocos.

Um país pobre como nós, subdesenvolvido, indefeso, sem marinha para a extensão das zonas oceânicas a defen­der, onde existem tantos núcleos dispersos de portugueses, não pode dar-se ao luxo ou à arrogância de se apresentar «orgulhosamente só».

Porque persistimos, agarrados às abas do casaco dos Estados Unidos em não votar no seu Conselho de Segu­rança a admissão da China Continental na O. N. U., embora quando das consultas guardemos passivamente a absten­ção? Devemos-lhe até a fidalga generosidade de respeitar em Macau os seus convénios seculares.
A China Continental, porque a da Formosa é um arti­fício construído e mantido pela esquadra americana tem sabido respeitar a integridade de Macau não obstante reconhecermos exclusivamente, pela via diplomática, com o seu representante acreditado em Lisboa, esse ilogismo geográfico de uma ilha governada por um fantoche de que a própria América um dia zombou.

Que diria o nosso Governo se amanhã se instaurasse na Ilha da Madeira um regime autónomo que a América reconhecesse e que não consentisse que fosse dominado pelas forças legítimas do nosso Continente?

Quando da usurpação violenta e cruel do nosso Estado da índia, que só por si desmentiu toda a sagacidade e todo o sentido realista ao nosso Governo, além de denunciar a falsidade dos postulados pacifistas de Neru, a China Con­tinental esteve a nosso lado, platonicamente, é certo, como todas as restantes nações, mas enfim com uma simpatia e uma solidariedade moral que, no fim de contas, nós não lhe merecíamos.

A política externa do país tem oscilado entre humi­lhações e ridículas manifestações de importância, de exte­riorização fútil e de fausto, como se fôssemos um país ainda perfumado pelo cravo e pela canela das Índias.
Quantos pequenos consulados se têm elevado a embai­xadas com o consequente dispêndio de verbas absoluta­mente inúteis! Embora os espaços internacionais de comu­nhão se hajam dilatado e as normas correntes da diplo­macia se tenham na verdade intensificado, pela incessante multiplicidade dos interesses e das comunicações, não há dúvida que temos exagerado na elevação de embaixadas em países que não as justificam de modo algum! Sempre a mania das grandezas, aquela mesma mania, que há anos nos fez recusar as verbas tão úteis para a nossa economia do Plano Marshall.

A República encontrou e manteve em altíssimo nível, com vultos intelectuais eminentes, as embaixadas mais representativas das nossas constantes geográficas e his­tóricas, pois são essas que determinam fundamentalmente, em toda a parte a definição do rumo de uma política externa. No nosso caso, essas constantes, a que importa imprimir o mais transcendente relevo, são as ligações com a Espanha, com a Inglaterra, com o Brasil e com a Amé­rica do Norte. Não pode concluir-se que, com essas potên­cias, as nossas relações nem sempre tenham sido claras, construtivas e íntimas nos últimos decénios.

Vale mais ter uma dúzia de apoios e de amigos sóli­dos e permanentes do que numerosas e dispersas relações com países subalternos e distantes, cujos agentes servem apenas para encher de esplendor mundano os jantares e as recepções de gala... um fingimento burlesco de grande audiência internacional.

É certo que se perdeu, dolorosamente, a fulgurante tradição, que vinha aliás da monarquia, da nossa vida diplomática, servida hoje por burocratas, por bacharéis, por funcionários de concurso, sem projecção nacional, con­finados aos seus deveres estritamente formais. Já não há um Teixeira Gomes, um João Chagas, um Duarte Leite, um Norton de Matos, um Alberto de Oliveira, um António Feijó, um António Luís Gomes, um Guerra Junqueiro, homens de superior estatura que tornavam maior e mais acatado o pais que representavam.

Encerrou-se a escola da diplomacia portuguesa e tudo passou a ser mercenário, funcional, subserviente.

Os grandes homens, capazes de nos representar lá fora, ou não se revelam ou se recusam para não servirem um Governo cujas directrizes mal entendem ou de que dis­cordam profundamente.

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(fim da transcrição)
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