quarta-feira, 31 de março de 2010

A propósito da campanha de Humberto Delgado, uma entrevista que não foi publicada, tal como é explicado abaixo.

Entrevista concedida ao «Diário de Lisboa», em Maio de 1958, que foi totalmente cortada pela censura e sobre a qual o entrevistado foi interrogado pela P. I. D. E. quando esteve preso em Junho do mesmo ano e que foi lida no Comício realizado em Guimarães nesse ano de 1958.


Na grave conjuntura a que chegamos, o Chefe do Governo só tem uma solução útil: renunciar aos seus pode­res e deixar que a Pátria siga o seu destino normal — afir­mou-nos o dr. António de Oliveira Braga, presidente da Comissão Distrital de Braga da Candidatura do General Humberto Delgado.
O dr. António de Oliveira Braga colocou-se desde a primeira hora, com franco entusiasmo e decidida coragem, ao lado do sr. General Humberto Delgado na sua Candi­datura à Presidência da República.
Ë uma personalidade muito conhecida e considerada em todo o Distrito de Braga, quer como advogado, quer como elemento oposicionista de intransigentes convicções, e a sua acção à frente da Comissão Distrital daquela Can­didatura tem-se desenvolvido com grande intensidade.
 sua volta estão reunidas numerosas pessoas de larga representação social, que o acompanham com a maior dedicação, perfeitamente integradas nos altos objectivos deste movimento.
Uma entrevista com ele estava, por isso, naturalmente indicada. Procuramo-lo, pois, na sede dos Serviços de Candidatura de Braga, numa destas últimas noites, e ali quisemos ouvi-lo, ainda que desviando-o, por uns momen­tos, das suas preocupações e canseiras, que lhe absorvem agora todo o tempo e toda a atenção.
Como sempre, a sede regorgitava de simpatizantes e aderentes, gente de todas as categorias sociais que ali ia levar o seu apoio à causa do valoroso General, apoio expresso por mil formas, e só a sua amizade pelo nosso jornal permitiu que, amavelmente, se distraísse das suas tarefas.
Começamos por perguntar:

— Como aprecia V. Exª. o actual momento político? Sem hesitar, logo respondeu:

— Esta é mais uma etapa, e sem dúvida a mais impor­tante, da luta em que todos estamos empenhados para libertar a Pátria da Ditadura. Basta não ser cego para se verificar que o País, ao cabo de 32 anos de figurino único, cada vez está mais cansado e desiludido e que se aglutina imediatamente em volta de quem lhe prometer essa libertação. O espectáculo é patente. Em menos de duas semanas, um General, quase até então desconhecido do grande público, tornou-se um ídolo popular, uma figura representativa, uma força catalizadora tão poderosa que é necessário recorrer a mil estratagemas para a conter. E isto porquê? É simples: porque atacou frontalmente o ditador, porque não receou dizer aquelas verdades, aliás tão naturais, que todos os portugueses sentem e reconhe­cem, mas que não têm coragem de dizer alto e em bom som, como ele fez. A sua bravura, a sua valentia, a sua clareza e o seu «panache» conquistaram, num espaço pro­digiosamente curto, a alma nacional e creio que agora é já tarde para serem anulados os efeitos do seu apareci­mento na nossa cena política. É indiscutível que se trata de um oficial-general muito distinto, de inteligência pene­trante, culto, viajado, com vasta experiência dos proble­mas internacionais, de coração bondoso, afável no trato e rasgado nas atitudes, mas não foi esse somatório de qualidades que lhe deu a aura de que hoje goza em todos os quadrantes de Portugal. Foi exactamente a sua cora­gem, foi o seu desassombro, foi a sua interpidez moral e física que fascinou a multidão. Não importa saber de onde veio — nós, democratas, não queremos separar e isolar os homens, inutilizando-os, por meras considerações doutri­nárias; o que importa é saber para onde vai e o que quer. Nada mais belo e mais nobre do que um acto de contricção em público, sobretudo quando ele, como no caso presente, pode provocar riscos e consequências extremas para a sua carreira e até para a sua própria vida... pelo que se está a a ver, infelizmente.

— Porque aderiu V. Exª. tão incondicionalmente à sua Candidatura?

— Porque ela desde o início me pareceu a mais viá­vel. Mas eu penso que para sairmos do zero político a que chegamos—pelo esfacelamento de todas as correntes de opinião — é necessário admitir uma transição, ainda que o mais curta possível, com o apoio formal do Exército, a fim de evitar o caos que tão desvairadamente nos está a ser preparado. Como a ditadura destruiu o sedimento parti­dário da vida nacional, há que proceder a uma reorgani­zação prévia dos quadros políticos que traduzem as várias correntes e depois, numa atmosfera de ordem e esclare­cimento, proceder a eleições gerais. É delas que deverá partir a definição do futuro regime, embora seja incon­testável que a vontade geral do País se decidirá pelas formas democráticas de Governo. Sempre defendi (1), como a única exequível neste momento, a solução apresentada com tanta lucidez pelo sr. General Humberto Delgado. Um convalescente não pode entregar-se repentinamente às suas actividades normais. Para mim, portanto, a Candidatura que apoio é eminentemente patriótica e sob essa luz deve ser observada.

— Qual a situação a que chegou o Governo, perante a unanimidade nacional de que V. Exª. já nos falou um dia e que agora tão expressivamente se manifesta em torno do General Humberto Delgado?

— O Governo perdeu completamente a simpatia das massas e até a compreensão das «élites» mais benévolas, não só porque já esgotou «toda a sua capacidade resolutiva, tanto no domínio político como no social, mas tam­bém porque pactuou impudicamente com a plutocracia, deixando-se enredar numa teia de interesses inconfessá­veis e ilegítimos. Perdeu todo o idealismo que porventura nos primeiros anos ainda arrastou uma falange de ingé­nuos e bem intencionados portugueses, Não soube romper a tempo com as ambições e os egoísmos vorazes que con­sentiu no seu seio e hoje é uma espécie de barcaça a des­mantelar-se vogando ao sabor da corrente... Economica­mente, já não pode ir mais longe (e bem perto foi) sem atraiçoar o seu próprio ideário; politicamente, abriu um fosso, já intransponível, entre si e a Nação. Um dos seus mais proclamados e vistosos objectivos consistia em fomentar a unidade nacional, em pacificar a família por­tuguesa, em estabelecer a concórdia e a disciplina, mesmo à custa de profundos sacrifícios materiais e espirituais.
E que resultou desses sacrifícios, traduzidos pela supressão das liberdades públicas e pela austeridade, melhor: pela mesquinhez do nosso teor de vida? Valeram a pena, realmente, esses sacrifícios, ao fim dos quais, como dizia o chefe do Governo, se redimiria a Pátria? A res­posta está dada — e já foi dada algumas vezes — mas agora com uma espantosa nitidez. Como pode sobreviver um Governo que desencadeou contra ele as forças mais antagónicas, unidas sinceramente para alcançarem uma única finalidade? De resto, dentro dos seus próprios áulicos o desentendimento é bem transparente. Foi mesmo já sacrificado o princípio de uma continuidade mantida a todo o transe e apontada como uma das suas maiores virtudes!

— Que entende então do futuro desse Governo?

— Como todos temos visto pela propaganda da União Nacional (esse mito que é, no fim de contas, o pseudónimo do próprio Governo) nada existe em Portugal de efectivo e permanente fora do ditador. Endeusado até ao invero­símil, só falta pesá-lo a oiro e a diamantes, como fazem os ismaelitas ao príncipe Aga Khan! Perdeu-se a noção das proporções e o sentido das realidades obliterou-se de tal modo que parece haver um único homem no Mundo capaz de desafiar com êxito as leis fisiológicas: é o dita­dor, o eterno, o que vencerá a velhice e a morte. Nem se repara que está próximo daquele limite de idade para o exercício das funções públicas que ele mesmo prescreveu... Admitindo, se é que os seus escassos prosélitos se não ofendem com o sacrilégio, que ele virá um dia a abandonar a sua olímpica posição, pode perguntar-se, penso que com alguma lógica, o que irá suceder a um Governo assim decepado sem guia e sem mística? A tese dos poucos que o seguem, vendados os olhos e paralizado o raciocínio, parece provir do velho ditado: — «enquanto o pau vai e vem, folgam as costas...». Mas será isto governar com clarividência, honestidade e patriotismo? Governar não é sobretudo prever?

— Nesse caso...— íamos a atalhar, mas logo o dr. Oliveira Braga replicou:

— Nesse caso, se é que entendo desde já o seu pensa­mento, o chefe do Governo só tem uma solução útil na grave conjuntura a que chegamos, grave por não ter pers­pectivas de futuro, nem sequer condições para o presente: renunciar patrioticamente aos seus poderes discricioná­rios e deixar que a Pátria siga o seu destino normal, vol­tando à legalidade republicana de onde foi desviada por uma aventura imprudente. A sua própria humildade de católico, superior à vã glória de mandar — e mandar con­tra a vontade explícita dos seus concidadãos — decerto lhe indicará esse caminho como aquele que um homem aos setenta anos não vacilará em aceitar de bom grado. Acreditará ele nas lisonjas dos que o cercam e, no fundo, apenas procuram prolongar a manutenção das suas sine-curas e a distribuição das abundantes benesses com que têm sido premiados?

— Na verdade — acrescentamos — o panorama actual da nossa existência política não é nada favorável ao chefe do Governo...

— Não é preciso alongar-me em comentários a esse respeito. A lição extraída da Candidatura do General Humberto Delgado é definitiva. O chefe do Governo con­citou contra si, pela sua obstinação, a discordância da esmagadora maioria do país. Foi feito já um plebiscito. A causa do nosso Candidato está triunfante. É impossível deixar de tirar dos factos conclusões positivas.

— No seu entender, qual teria sido a grande hora para que o chefe do Governo se retirasse?

— No fim da guerra, em 1945. Então o país levan­tou-se, quase de surpresa, contra a ditadura, e reclamou os seus direitos, mas foram-lhe negados e perseguiram-se aqueles que, confiados na lealdade alheia, revelaram as suas opiniões. Fantástico! Ideologicamente, ela tinha tam­bém perdido a guerra, visto que a vitória pertenceu às democracias e nem o apressado e inconsistente sofisma da «democracia orgânica» pôde encobrir o fracasso. Os ser­viços que, durante esse período da guerra, teve oportunidade de prestar ao país — e prestou-os porque era então o detentor do Poder como sempre, pela força e pela tira­nia —, através aliás de atitudes criticáveis, foram já pagos com juros dobrados pela submissão imposta durante treze anos e pela falência económjca-social de que hoje somos vítimas. Não acha que está principescamente pago?

— E agora?

— Já o disse atrás. O bom senso e a devoção patrió­tica indicam há muito um único caminho ao chefe do Governo: a sua renúncia ao Poder, renúncia voluntária e, direi mesmo, nobremente cristã. Quanto mais tarde esse caminho for tomado mais severo será o julgamento da História, porque mais trágicas poderão vir a ser as con­sequências da demora. Sempre que tenho falado e escrito sobre este tão doloroso tema, nunca deixei de o afirmar abertamente. Hoje, mais que nunca, sinto que tenho razão.
Fui aluno do Dr. Oliveira Salazar, adimirei-o como Mestre, acompanhei-o numa saudosa jornada académica a Ëvora, e, em nome da Pátria, peço-lhe, a tantos anos de distância, que medite nas minhas palavras... de obscuro mas apaixonado português.

(1) Ver o meu recente opúsculo: «Nas quatro «liberdades»... de um Governo Trintenário».

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